domingo, 30 de setembro de 2012

STF CAMINHA PARA NOVO CASO DREYFUS?



 
Mais cedo ou mais tarde, este julgamento também será julgado, como ocorreu no caso Dreyfus. O preço desse processo de exceção não é só o risco da injustiça, mas o desrespeito à Constituição. A corte francesa decidiu reincidentemente contra provas, mandando às favas conquistas fundamentais da revolução de 1789. Será esse também o caminho do STF?

Por Breno Altman
 

No dia 29 de setembro de 1902, falecia o célebre escritor francês Emile Zola, em circunstâncias até hoje não esclarecidas. Da sua vasta obra literária, um pequeno panfleto foi o que mais causou impacto. Intitulava-se “Eu acuso!”, publicado em 1898, com tiragem inicial de 300 mil exemplares. Abordava rumoroso tema judicial, conhecido como o caso Dreyfus.

Tudo começou nos idos de 1894, quando uma faxineira francesa encontrou, na embaixada alemã em Paris, carta pertencente ao adido militar, tenente-coronel Schwarzkoppen. O texto parecia indicar a existência de um oficial galo espionando a favor de Berlim. Dentre os possíveis autores do documento incriminador, apenas um era judeu, o capitão Alfred Dreyfus.

A possibilidade acusatória caiu como uma luva para as elites francesas, que apostavam em reconstruir sua influência com discurso artificialmente nacionalista. Pairava sobre a burguesia tricolor a pecha de vende-pátria, desde a rendição, em 1871, na guerra franco-prussiana. O primeiro-ministro Louis Adolphe Thiers, depois presidente da III República, chegou a contar com colaboração do invasor alemão para esmagar a Comuna de Paris, poucos dias após o armísticio que colocou fim aos embates entre ambas nações.

Atacar os judeus, portanto, era bom negócio para despertar o ódio racial-chauvinista da classe média e reconquistar sua simpatia. Acovardados diante do império de Bismarck, os magnatas de Paris trataram de buscar apoio social apontando para um inimigo interno. Recorreram à artilharia da imprensa sob seu controle para disseminar imagem de vilania que servisse a seus objetivos.

O julgamento contra Dreyfus incendiou o país. O oficial, além da dispensa por traição, acabou condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na costa da Guiana Francesa. Um processo relâmpago, conduzido por tribunal militar, sob pressão dos jornais direitistas, selou seu destino.

Três anos depois de promulgada a sentença, o irmão do réu descobre documentos que inocentavam Dreyfus e comprometiam Charles-Ferdinand Esterhazy, nobre oficial de origem húngara, com o ato de espionagem. Um segundo julgamento é realizado, em 1898, mas os magistrados mantêm a decisão anterior, a despeito das novas provas.

Emile Zola escreve, então, seu famoso livreto. Destemido e respeitado, denuncia o processo como fraude judicial e conspiração política, provocando enorme comoção. Morreria asfixiado, há 110 anos, presumivelmente assassinado, a mando de quem não gostava de suas posições.

Quanto a Dreyfus, anistiado em 1899, a verdade seria reposta por um tribunal apenas em 1906. Mas jamais foi reincorporado ao exército ou compensado pela injustiça sofrida.

Esta história se conecta como uma parábola ao julgamento da ação penal 470, conhecida como “mensalão”, atualmente tramitando pelo Supremo Tribunal Federal, a máxima corte judicial brasileira.

Uma das inúmeras situações de financiamento ilegal de campanhas vem a luz, dessa vez envolvendo o Partido dos Trabalhadores e seus aliados, e a máquina de comunicação a serviço das elites trata de transformá-la no “maior caso de corrupção da história do país”.

Forja-se uma narrativa verossímil, de votos comprados no parlamento, ainda que não haja qualquer evidência concreta de sua existência. Inflama-se as camadas médias contra o principal partido de esquerda e alguns de seus dirigentes históricos. Lança-se campanha incessante de pressão sobre os ministros da corte, oferecendo-lhes a opção entre o céu e o inferno a depender de sua atitude diante do caso.

Jurisprudências novas são criadas para atender o clamor da opinião publicada. Garantias constitucionais, atropeladas, dão lugar a outros paradigmas. Alguns ministros resistem bravamente, mas vai se desenvolvendo roteiro midiático cujo desfecho está antecipadamente escrito, salvo mudanças abruptas.

Disse o ministro Ayres Britto, a propósito, que não deve ser perguntado se o réu sabia de suposto fato criminoso, mas se haveria como não sabê-lo. Ou seja, não é fundamental que haja provas de autoria daquilo que se denuncia. Basta que sua função – ou até papel histórico – torne legítima a afirmação de que o indiciado tem o domínio do fato, elemento que seria suficiente para condenação exemplar, segundo o mais recente parâmetro judicial.

Há um Dreyfus escolhido, nessa alegoria. Dessa feita não é um judeu, que outros são os tempos, mas a principal figura do PT depois do ex-presidente Lula. José Dirceu, ex-presidente do partido e ex-chefe da Casa Civil, foi sendo transformado, nos últimos anos , em um grande vilão nacional. A campanha orquestrada contra si parece ser o caminho dos conservadores para ajustar contas com a esquerda na barra dos tribunais.

A virulência dos ataques, aliás, é reveladora do pano de fundo que percorre o processo, além de incentivar o raciocínio de algumas das vozes e veículos que mais fortemente combatem os réus. Dirceu e José Genoino, goste-se ou não deles, são representantes ilustres da geração que se dispôs a resistir, com a vida ou a morte, contra a ditadura que muitos de seus detratores apoiaram com galhardia ou diante da qual se acovardaram.

Líderes de um campo político considerado morto no final do século passado, ambos têm que ir ao cadafalso para que a direita possa ter chance de marcar com lama e fel os dez anos de governo progressista, golpeando o partido que encarna esse projeto. Suas biografias devem ser rasgadas ou suprimidas, no curso dessa empreitada, pelo trivial motivo de apresentarem mais serviços prestados à nação e à democracia que as de quem hoje os agride. Inclusive, ironicamente, as de quem tem o dever legal de julgá-los.

Junto com Dirceu e Genoino, sobe ao banco dos réus também Delúbio Soares. Dos três dirigentes, é quem efetivamente assumiu responsabilidade por acordos e financiamentos irregulares para disputas eleitorais e partidos aliados. Sua versão dos fatos, pelos quais jamais culpou quem fosse, foi preterida e desprezada, à revelia das provas, para que vingasse a narrativa de Roberto Jefferson, o candidato a Esterhazy nessa chanchada.

O ex-deputado petebista, contudo, é recebido como anjo vingador na seara do conservadorismo e até por ministros da corte. Sem a tese do “mensalão”, parece evidente, o espetáculo inquisitorial possivelmente estaria esvaziado. A chacina judicial do ex-tesoureiro do PT fez-se indispensável.

Mais cedo ou mais tarde, porém, este julgamento também será julgado, como ocorreu no caso Dreyfus. O preço desse processo de exceção, afinal, não é apenas o risco da injustiça, mas o desrespeito à Constituição e à democracia. A corte francesa dobrou-se aos interesses oligárquicos e decidiu reincidentemente contra provas, mandando às favas conquistas fundamentais da revolução de 1789. Será esse também o caminho do STF? Mesmo sabendo que a história acontece como tragédia e se repete como farsa?

Breno Altman é jornalista, editor do Opera Mundi
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Do Blog O TERROR DO NORDESTE

MENSALÃO: RISCO DE REVISÃO DO JULGAMENTO CAUSA INDIGNAÇÃO


Luiz Flávio Gomes
                                                                                                     
José Dirceu

Nas centenas de manifestações indignadas com meu artigo (estritamente jurídico e explicativo) que fala da possibilidade de a decisão do STF no mensalão ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos notei um ponto central que ainda não foi bem compreendido no Brasil: como pode uma Convenção ou Tratado Internacional ser superior à Constituição brasileira? Como pode uma Corte Internacional ser superior ao STF? Você acha que uma Corte Internacional vai mandar no STF?
Te convido a “viajar” junto comigo nessa questão. Vamos lá. As leis brasileiras permitem a prisão civil do depositário infiel? Sim. A Constituição brasileira autoriza a prisão civil do depositário infiel? Sim. Por que então ela foi proibida pelo próprio STF na Súmula Vinculante 25? Porque o art. 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) só permite prisão civil do alimentante inadimplente.
Quando a Constituição do Brasil conflita com a Convenção Americana quem manda? Para aqueles não têm formação jurídica ou contam com formação jurídica ainda em fase de andamento, mandaria sempre a CF. Resposta errada! Nem sempre. Pode ser que sim, pode ser que não.
Por quê? Porque manda, na verdade, a norma mais favorável aos direitos e liberdades das pessoas (a norma mais favorável, consoante o princípio pro homine). Quem disse isso? STF. Onde? No Recurso Extraordinário 466.343-SP.
Por que a proibição da prisão civil para o depositário, prevista na CADH, foi respeitada, em detrimento (em prejuízo) da CF? Porque mais favorável. Então o STF segue essa doutrina da norma mais favorável? Sim (é só ver a Súmula Vinculante 25).
O Brasil está sujeito à jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos? Sim. Desde quando? Desde 1998. O Brasil era livre para aceitar ou não essa jurisprudência? Sim. Se aceitou, agora tem que cumprir o que a Corte decide? Sim. Por força de qual princípio? Perdoem-me o nomão feio: pacta sunt servanda (assinou um pacto, agora cumpre). Você não é obrigado a assinar nenhum documento de que me deve mil reais. Se assinar, cumpra!
Já houve algum caso em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (que está em Washington) ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (que está em San Jose da Costa Rica) já tenha condenado o Brasil? Sim. Muitos casos? Sim. Quais (por exemplo)? Caso Ximenes Lopes, Maria da Penha, Escher, Septimo Garibaldi, Araguaia etc. Muitos casos. O Brasil está cumprindo essas decisões? Sim (pagando indenizações, respeitando regras, mudando o direito interno etc.). Por que o Brasil está cumprindo? Para honrar seus compromissos e por causa das sanções internacionais possíveis (proibição de exportação de produtos, por exemplo).
A jurisprudência do Sistema Interamericano é vinculante para o Brasil? Sim. Por que a jurisprudência brasileira não a segue rigorosamente? Porque não temos tradição (nem cultura) de respeitar os pactos internacionais que firmamos. Agora que isso está mudando (pouco a pouco).
Então afirmar que a decisão do mensalão pode ser questionada junto à Comissão Interamericana é “viajar na maionese” (expressão de um indignado, dirigida a mim carinhosamente)? Não. Por que não? Porque apontamos casos concretos já julgados pela Corte internacional que deveriam orientar o julgamento do STF (Las Palmeras e Barreto Leiva).
Há risco de haver revisão internacional desse julgamento (tão emblemático quanto moral, ética, cultural e politicamente importante)? Sim. Isso é invenção de quem? Do próprio Brasil que assinou tratados internacionais e aceitou a jurisprudência do Sistema Interamericano. Mas as decisões citadas, contra Colômbia e Venezuela, valem no Brasil? São decisões que formam precedentes. Nos casos idênticos a Corte vai segui-las.
Mas, e a soberania do Brasil? Todo país que assina um pacto internacional vai perdendo sua soberania externa, por sua livre e espontânea vontade (Ferrajoli). Os réus do mensalão poderão conquistar algum benefício no plano internacional? Podem. Novo julgamento, muito provavelmente. Quem diz isso? Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, 2, “h”. O que está escrito aí? O direito ao duplo grau de jurisdição.
O Brasil, quando assinou essa Convenção, fez ressalva desse ponto? Não. Esse direito vale para todo mundo? Sim. Inclusive para quem tem foro privilegiado? Sim. Quem disse isso? A Corte disse isso no caso Barreto Leiva, julgado no final de 2009.
Mas o STF não sabia disso? Muito provavelmente não. Por quê? Porque não existe tradição sólida na jurisprudência brasileira de respeitar o direito internacional firmado e aceito pelo Brasil. Tudo isso está mudando? Sim, lentamente. Então a formação jurídica no Brasil terá que ser alterada completamente? Sim, urgentemente. Por quê?
Porque toda violação dos nossos direitos previstos nos tratados internacionais (a começar pelo direito de liberdade de expressão, que nos permite escrever tudo que quisermos nas redes sociais, desde que não ofenda terceiros), agora, se não amparada no Brasil, pode ser questionada no plano internacional, onde temos 7 juízes em Washington e mais 7 juízes na Costa Rica para nos ouvir (sempre começando pela Comissão, que está nos EUA).
Meus amigos: vamos ficando por aqui na nossa “viagem na maionese”. Mas me coloco à disposição de vocês para novos esclarecimentos. Avante!
Luiz Flávio Gomes – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me: www.professorlfg.com.br

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

PSDB, OLHA O TEU RABO.


Saiu na Folha (*) excelente – como sempre ! – artigo de Vladimir Safatle (até quando ele se aguenta na Folha, com aquela proximidade, ao lado ?)

FALSA INTIMIDADE



A moralidade é uma virtude disputada. Mesmo aqueles que dela conhecem apenas o nome gostam de falar sobre virtudes morais como se fossem íntimos de longa data. 

Em época eleitoral, por exemplo, somos obrigados a acompanhar o espetáculo lamentável de moralistas de última hora, que parecem acreditar no pendor infinito da população ao esquecimento e à indignação seletiva. 

Melhor seria que eles se abstivessem de falar de moral antes de meditar profundamente a respeito da passagem do Evangelho que exorta a primeiro tirar a trave no seu próprio olho antes de retirar o cisco no olho do próximo. 

Por exemplo, o Brasil vive um momento importante com o corajoso julgamento do chamado mensalão. Espera-se, com justiça, que daí nasça uma nova jurisprudência para crimes de corrupção eleitoral. Espera-se também que ninguém saia impune desse caso vergonhoso. 

No entanto é tentar resvalar a moralidade à condição de discurso da aparência e da esperteza ver políticos como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seu candidato à Prefeitura de São Paulo tentarem utilizar a justa indignação popular em benefício eleitoral próprio. 

Caso eles realmente amem os usos das virtudes morais em política, melhor seria se começassem por fazer uma profunda autocrítica sobre o papel de seu partido na criação do próprio mensalão, da acusação de compra de voto na emenda da reeleição, assim como fornecer uma resposta que não fira a inteligência quando membros de seu partido -como Marconi Perillo, Yeda Crusius e Cássio Cunha Lima- aparecem envolvidos até a medula em casos de corrupção. 

Seria bom também que eles explicassem por que apoiam incondicionalmente um prefeito que chegou a ter seus bens apreendidos pela Justiça no ano passado devido ao caráter da contratação da empresa Controlar, e por que a Justiça suíça e a francesa investigam propinas que a empresa Alstom teria pago a políticos do governo paulista em troca de contratos com a Eletropaulo. 

Por fim, seria uma boa demonstração de respeito aos eleitores que o candidato Serra se defendesse, de preferência sem impropérios, a respeito das acusações sobre o processo de privatização de empresas federais no período FHC. 

Sem isso, toda essa pantomima lembrará uma velha piada francesa sobre um sujeito que dizia a todos em sua pequena cidade ser amigo de Charles de Gaulle. Eis que um dia, De Gaulle aparece na cidade. Para não ser desmascarado, o sujeito resolve chegar perto do presidente e, com um tom de cumplicidade, perguntar: “E aí, Charles, o que há de novo?”. “De novo”, respondeu De Gaulle, “só mesmo essa intimidade”. 

VLADIMIR SAFATLE



(*) Folha é um jornal que não se deve deixar a avó ler, porque publica palavrões. Além disso, Folha é aquele jornal que entrevista Daniel Dantas DEPOIS de condenado e pergunta o que ele achou da investigação; da “ditabranda”; da ficha falsa da Dilma; que veste FHC com o manto de “bom caráter”, porque, depois de 18 anos, reconheceu um filho; que matou o Tuma e depois o ressuscitou; e que é o que é,  porque o dono é o que é; nos anos militares, a  Folha emprestava carros de reportagem aos torturadores
Fonte:  Conversa Afiada

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

BASTIDORES DE UM JULGAMENTO E DE UMA "CRUZADA MIDIÁTICA"



Quem se fiar nas matérias da mídia sobre a briga entre os ministros relator e revisor do “mensalão” pode até comprar o “conto de fadas” em que o herói Barbosa tenta defender a sociedade do vilão Lewandowski. Mas quem assistiu à 28ª sessão do julgamento teve outra percepção: a de que o relator pode estar tentando intimidar os ministros que acolhem interpretações, das leis e dos fatos, divergentes da sua. O artigo é de Najla Passos.

Brasília - O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou na era do pop com o início da transmissão ao vivo dos seus julgamentos, em 2002. E, a despeito de alguns efeitos colaterais apontados com preocupação por estudiosos do Direito, como a exacerbação do ego dos atores sociais envolvidos, a iniciativa só revigora a democracia. Da mesma forma com que ministros se aproximam da população, a ponto de se tornarem heróis defendidos com o mesmo ardor que artilheiros da seleção brasileira, as mazelas do poder mais encalacrado da república são descortinadas aos olhos de quem quiser ver. E, pelo menos neste aspecto, o julgamento do “mensalão” tem sido, sim, emblemático.

Na sessão desta quarta (25), a 28ª do julgamento que a mídia tenta vender como o “maior da história”, os ministros relator, Joaquim Barbosa, e revisor, Ricardo Lewandowski, voltaram a se estranhar, como já havia ocorrido antes, e mais de uma vez. Mas o tom subiu mais do que o normal. Barbosa se irritou, entre outras coisas, porque o revisor considerou que não havia provas definitivas para condenar um réu que ele já havia taxado, antes, como culpado. 

Bastante alterado, Barbosa acusou Lewandowski de fazer “vista grossa” aos autos, insinuou que o colega se valia de “hipocrisia”, entre outras acusações. O revisor, que deixou claro o seu direito a ter um entendimento diferenciado, reagiu e disse que se o relator não conseguia admitir a contradição, deveria propor a extinção da figura do “ministro-revisor”. 

Outros ministros saíram em socorro de Lewandowski. “Cuidado com suas palavras. Vamos respeitar os colegas. Agressividade não tem lugar nesse plenário”, disse Marco Aurélio Mello. E, após a intervenção do presidente da corte, Ayres Britto, o “julgamento-espetáculo” prosseguiu sem a presença de Barbosa no plenário. 

Acontece que o relator vem construindo uma relação bastante sólida com a mídia, dentro e fora do plenário da corte. Nos seus votos, reverbera, coincidência ou não, o veredito que as redações já haviam fechado antes mesmo do início do julgamento: todos os réus são culpados e o STF só precisa oficializar isso o mais rápido possível. Barbosa, além de condenar com pulso firme, mantendo-se fiel à tese da denúncia, é o “garoto-propaganda” da cruzada midiática por agilidade a qualquer preço na condução do processo. Nos bastidores, desafia a convenção de que ministro não fala sobre processos em andamento e atende com incomum presteza os jornalistas que o procuram ao final de cada sessão. Mas, para se resguardar de possíveis críticas, o faz sempre em “off”.

Off é a redução da expressão “off de record” que, em inglês, significa fora dos registros. Segundo o Manual de Redação da Folha de São Paulo, “designa informação de fonte que se mantém anônima”. Conforme o de O Globo, “é um caso especial de declaração, em que a fonte não é identificada”. No jornalismo estadunidense, significa informação que deve ser usada apenas para a condução da reportagem, jamais para ser lançada como verdade inquestionável. No jornalismo tupiniquim, entretanto, o “off” serve de salvaguarda também para todo tipo de manipulação da informação, como aquelas reveladas recentemente com o escândalo Veja-Cachoeira. Onde enquadrar, então, a prática recorrente de Barbosa? 

A intenção confessa do relator parece nobre: ajudar a dirimir as dúvidas de uma categoria que, em geral, muito pouco familiarizada com os pormenores do direito. O “off”entra como estratégia necessária para o magistrado manter a devida discrição e o necessário distanciamento dos fatos. O resultado, porém, é outro: suas intervenções sempre ultrapassam o limite de possíveis respostas objetivas a dúvidas técnicas. O relator reafirma a superioridade das suas teses jurídicas, cobra agilidade no voto dos demais colegas e críticas posições discrepantes, em especial as do revisor. 

É preciso reconhecer que, no início, havia até uma certa resistência por parte dos jornalistas. “O Barbosa de novo não, gente”, “É preciso variar a fonte”, “Ele só fala em off”, comentavam. “Não tem jeito. A gente mal começa a pronunciar ministro e ele já está aqui”, reclamava outro. “Ele é muito grosso. Eu tenho até medo de dirigir uma pergunta para ele”, confessava uma “foca”. Mas agora, passados quase dois meses do início do julgamento, a questão parece pacificada. Ninguém mais questiona a supremacia do relator como “comentarista oficial” do processo. 

E, assim, ele assume cada vez mais ares de editor-geral de toda a imprensa dita “livre”. De uma feita, reclamou dos jornalistas que contrapunham seus argumentos com as teses da defesa. De outra, atacou o delegado da Polícia Federal Luís Flávio Zampronha, que criticou, via imprensa, a inclusão de duas das rés no processo. “Todo agente público tem uma série de limitações: precisa ser discreto, manter o sigilo. Foi um deslize gravíssimo [a concessão da entrevista com comentários sobre a ação]”, afirmou, em “off”. Contra senso? A imprensa sequer discute. A prática institucionalizada parece perfeita para ambos. O ministro abastece a mídia com o combustível necessário para justificar esses sete anos de “justiçamento” dos réus do “mensalão”. E Barbosa, em contrapartida, é alçado ao posto de herói nacional, com direito a foto de primeira página transvestido de super-homem. Está tudo nos jornais. 

Quem ler, ouvir ou assistir as reportagens sobre a sessão de julgamento do mensalão desta quarta, pode até comprar o “conto de fadas” de que o “herói” Joaquim Barbosa só estava defendendo a sociedade brasileira do seu arqui-inimigo Ricardo Lewandowski, que tentava inviabilizar as condenações de “corruptos inveterados”. Quem assistiu à sessão ao vivo, entretanto, terá outra percepção: a de que o relator, ego inflamado, pode estar tentando intimidar os ministros que acolhem interpretações, das leis e dos fatos, divergentes da sua. Algo indefensável em um órgão colegiado de Justiça.

Fonte: Carta Maior



SANTAYANA, LULA, O STF E OS JORNALISTAS


Lula despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder.




O Conversa Afiada republica artigo de Mauro Santayana do JB online:

O VEREDICTO DA HISTÓRIA



por Mauro Santayana

Cabe aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.

Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica. 

Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede,  apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o  atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.

Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.

Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955.  Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional do Brasil.

Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão,  Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida. 

Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com  o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país. 

Vozes sensatas do Brasil começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.

É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo  ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato. 

Os meios de comunicação sofrem dois desvios  à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses. 

O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.

Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão  à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.

É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.    

Fonte:  Conversa Afiada

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

MENSALÃO: JULGAMENTO NO STF PODE NÃO VALER




Luiz Flávio  Gomes     LUIZ FLÁVIO GOMES
Muitos brasileiros estão acompanhando e aguardando o final do julgamento do mensalão. Alguns com grande expectativa enquanto outros, como é o caso dos réus e advogados, com enorme ansiedade. Apesar da relevância ética, moral, cultural e política, essa decisão do STF – sem precedentes - vai ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, com eventual chance de prescrição de todos os crimes, em razão de, pelo menos, dois vícios procedimentais seríssimos que a poderão invalidar fulminantemente.
O julgamento do STF, ao ratificar com veemência vários valores republicanos de primeira linhagem - independência judicial, reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc. -, já conta com valor histórico suficiente para se dizer insuperável. Do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do Estado de Direito, no entanto, o provincianismo e o autoritarismo do direito latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se como deploráveis.
No caso Las Palmeras a Corte Interamericana mandou processar novamente um determinado réu (na Colômbia) porque o juiz do processo era o mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo processo. O Regimento Interno do STF, no entanto (art. 230), distanciando-se do padrão civilizatório já conquistado pela jurisprudência internacional, determina exatamente isso. Joaquim Barbosa, no caso mensalão, presidiu a fase investigativa e, agora, embora psicologicamente comprometido com aquela etapa, está participando do julgamento. Aqui reside o primeiro vício procedimental que poderá dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte Interamericana.
Há, entretanto, um outro sério vício procedimental: é o que diz respeito ao chamado duplo grau de jurisdição, ou seja, todo réu condenado no âmbito criminal tem direito, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, h), de ser julgado em relação aos fatos e às provas duas vezes. O entendimento era de que, quem é julgado diretamente pela máxima Corte do País, em razão do foro privilegiado, não teria esse direito. O ex-ministro Márcio Thomaz Bastos levantou a controvérsia e pediu o desmembramento do processo logo no princípio da primeira sessão, tendo o STF refutado seu pedido por 9 votos a 2.
O ministro Celso de Mello, honrando-nos com a citação de um trecho do nosso livro, atualizado em meados de 2009, sublinhou que a jurisprudência da Corte Interamericana excepciona o direito ao duplo grau no caso de competência originária da corte máxima. Com base nesse entendimento, eu mesmo cheguei a afirmar que a chance de sucesso da defesa, neste ponto, junto ao sistema interamericano, era praticamente nula.
Hoje, depois da leitura de um artigo (de Ramon dos Santos) e de estudar atentamente o caso Barreto Leiva contra Venezuela, julgado bem no final de 2009 e publicado em 2010, minha convicção é totalmente oposta. Estou seguro de que o julgamento do mensalão, caso não seja anulado em razão do primeiro vício acima apontado (violação da garantia da imparcialidade), vai ser revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição para todos os réus, incluindo-se os que gozam de foro especial por prerrogativa de função.
No Tribunal Europeu de Direitos Humanos é tranquilo o entendimento de que o julgamento pela Corte Máxima do país não conta com duplo grau de jurisdição. Mas ocorre que o Brasil, desde 1998, está sujeito à jurisprudência da Corte Interamericana, que sedimentou posicionamento contrário (no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma reserva em relação a esse ponto. Logo, nosso País tem o dever de cumprir o que está estatuído no art. 8, 2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt servanda).
A Corte Interamericana (no caso Barreto Leiva) declarou que a Venezuela violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional, "posto que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em única instância e o sentenciado não dispôs, em consequência [da conexão], da possibilidade de impugnar a sentença condenatória."  A coincidência desse caso com a situação de 35 réus do mensalão é total, visto que todos eles perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão.
Mas melhor que interpretar é reproduzir o que disse a Corte: "Cabe observar, por outro lado, que o senhor Barreto Leiva poderia ter impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador que tinha conhecido de sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a acusação de várias pessoas no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da regra de conexão traz consigo a inadmissível consequência de privar o sentenciado do recurso a que alude o artigo 8.2.h da Convenção."
A decisão da Corte foi mais longe: inclusive os réus com foro especial contam com o direito ao duplo grau; por isso é que mandou a Venezuela adequar seu direito interno à jurisprudência internacional: "Sem prejuízo do anterior e tendo em conta as violações declaradas na presente sentença, o Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que, dentro de um prazo razoável, proceda a adequação de seu ordenamento jurídico interno, de tal forma que garanta o direito a recorrer das sentenças condenatórias, conforme artigo 8.2.h da Convenção, a toda pessoa julgada por um ilícito penal, inclusive aquelas que gozem de foro especial."
Há um outro argumento forte favorável à tese do duplo grau de jurisdição: o caso mensalão conta, no total, com 118 réus, sendo que 35 estão sendo julgados pelo STF e outros 80 respondem a processos em várias comarcas e juízos do país (O Globo de 15.09.12). Todos esses 80 réus contarão com o direito ao duplo grau de jurisdição, que foi negado pelo STF para outros réus. Situações idênticas tratadas de forma absolutamente desigual.
Indaga-se: o que a Corte garante aos réus condenados sem o devido respeito ao direito ao duplo grau de jurisdição, tal como no caso mensalão? A possibilidade de serem julgados novamente, em respeito à regra contida na Convenção Americana, fazendo-se as devidas adequações e acomodações no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada e pode eventualmente ocorrer a prescrição.
Diante dos precedentes que acabam de ser citados parece muito evidente que os advogados poderão tentar, junto à Comissão Interamericana, a obtenção de uma inusitada medida cautelar para suspensão da execução imediata das penas privativas de liberdade, até que seja respeitado o direito ao duplo grau. Se isso inovadoramente viesse a ocorrer – não temos notícia de nenhum precedente nesse sentido -, eles aguardariam o duplo grau em liberdade. Conclusão: por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da eventualmente autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais histórica de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.
Luiz Flávio Gomes, 54, é doutor em direito penal, fundou a rede de ensino LFG, foi promotor de justiça (de 1980 a 1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). Seu site: www.professorlfg.com.br
Fonte:  BRASIL 247

O DISCURSO DE REQUIÃO NO SENADO ENCHE DE ORGULHO OS QUE ABOMINAM O GOLPE E ENCHE DE VERGONHA O PT, QUE NÃO TEM CORAGEM DE DIZER NADA.



Não costumo assinar manifestos, abaixo-assinados ou participar de correntes. Mas quero registrar aqui minha solidariedade a Luís Inácio Lula da Silva, por duas vezes presidente do Brasil. 

Diante de tanto oportunismo, irresponsabilidade, ciumeira e ressentimento não é possível que se cale, que se furte a um gesto de companheirismo em direção ao presidente Lula. Sim, de companheirismo, que pouco e me dá o deboche do sociólogo. 

A oposição não perdoa, e jamais desculpará a ascensão do retirante nordestino à Presidência da República. 

A ascensão do metalúrgico talvez ela aceitasse, mas não a do pau-de-arara. Este, não!

Uma ressalva. Quando digo oposição, o que menos conta são os partidos da minoria. O que mais conta, o que pesa mesmo, o que é significante, é a mídia, aquele seleto grupo de dez  jornais, televisões, revistas e rádios que consome mais de 80 por cento das verbas estatais de propaganda. Aquele finíssimo, distintíssimo grupo de meios de comunicação “que está fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada”, como resumiu com a sinceridade e a desenvoltura de quem sabe e manda, a senhora Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional dos Jornais. 

Este conjunto de articulistas e blogueiros desfrutáveis que faz a “posição oposicionista” nos meios de comunicação usa uma entrevista que não houve para, mais uma vez, tentar indigitar o ex-presidente. Primeiro, tivemos o famosíssimo grampo sem áudio. Mais hilário ainda: a transcrição do áudio inexistente mostrava-se extremamente favorável aos grampeados. Um grampo a favor. E sem áudio.

Lembram? 

Houve até quem quisesse o impeachment de Lula pelo grampo sem áudio e a favor dos grampeados, houve até quem ameaçasse bater no presidente. 

Agora, este mesmo conjunto de jornais, rádios, televisões e revistas, esses mesmos patéticos articulistas e blogueiros querem que se processe o ex-presidente. Não me expresso bem: não querem processá-lo.  Querem condená-lo, pois como a Rainha de Copas, de Lewis Carol, primeiro a forca, depois o julgamento. 

Recomendaria a vossas excelências que tapassem o nariz, não fizessem conta dos solecismos, da pobreza vocabular, das ofensas à regência verbal e lessem o que escreve esse exclusivíssimo clube de eternos vigilantes. 

Os mais velhos de nós, os que acompanharam o dia-a-dia do país antes do golpe de 64, vão encontrar assustadores pontos de contato entre o jornalismo e o colunismo político daquela época com o jornalismo e o colunismo político dos dias de hoje. Embora, diga-se, os corvos de outrora crocitassem com mais elegância que os grasnadores de agora.

Fui governador do Paraná nos oito anos em que Lula presidiu o Brasil. Por diversas vezes, inúmeras vezes, manifestei discordância com a forma de sua excelência governar, com suas decisões ou indecisões. Especialmente em relação à política econômica, à submissão do país ao capitalismo financeiro, aos rentistas. 

Mas havia um Meireles no meio do caminho. No meio do caminho, para gáudio da oposição e para a desgraça do país, havia um Meireles. 

É verdade que Lula acendeu uma vela também para os pobres. E não foi pouco o que ele fez. É preciso ter entranhados na alma o preconceito, a insensibilidade e a impiedade de nossas elites para não se louvar o que ele fez pela nossa gente humilde. Na verdade, no fundo da alma escravocrata de nossas elites mora o despeito com a atenção dada aos mais pobres por Lula.

Apenas corações empedrados por privilégios de classe, apenas almas endurecidas  pelos séculos e séculos de mandonismo, de autoritarismo, de prepotência e de desprezo pelos trabalhadores podem explicar esse combate contínuo aos programas de inclusão das camadas mais pobres dos brasileiros ao maravilhoso mundo do consumo de três refeições por dia.

A oposição –somem-se sempre a mídia com a minoria, mas o comando é da mídia-  também não perdoa Lula porque ele sempre a surpreendeu, frustrou suas apostas, fez com que ela quebrasse a cara seguidamente.

Foi assim em 2002, quando ele se elegeu; foi assim em 2006, quando se reelegeu; foi assim na crise de 2008, quando ele não seguiu as receitas daqueles gênios que quebraram o Brasil três vezes, entre 1995 e 2002,  e impediu que a crise financeira mundial levasse também o nosso país de roldão. E, finalmente, foi assim em 2010, quando elegeu Dilma como sucessora.

O desempenho da oposição –isto é, mídia e minoria, sob o comando da mídia- na crise de 2008 foi impagável. Caso alguém queira se divertir é só acessar um vídeo que corre aí pela internet com uma seleção de opiniões dos  economistas preferidos dos telejornais, todos recomendando a Lula rigor fiscal extremo, austeridade  e ascetismo dos padres do deserto; corte nos gastos sociais, cortes nos investimentos, elevação dos juros, elevação do depósito compulsório, congelamento do salário mínimo, contenção dos reajustes salarial, flexibilização dos leis trabalhistas, diminuindo direitos dos assalariados.

Enfim, recomendavam, como sempre aconselham, atar os trabalhadores ao pelourinho, tirar-lhes o couro, para  que os bancos, os rentistas, o capital vadio restassem incólumes e seus privilégios protegidos. Receitavam para o Brasil o que a troika da União Européia enfia goela abaixo da Grécia, da Espanha, da Itália, de Portugal. 

Lula não fez nada do que aqueles doutores prescreviam. Em um dos vídeos, um desses sapientíssimos senhores ridicularizava os conhecimentos macroeconômicos do presidente, prevendo que o “populismo” e o “espontaneísmo” de Lula levariam o Brasil ao desastre. Pois é.

A acusação mais frequente que se fazia, e se faz, a  Lula é a de ser “populista”. A mesmíssima acusação feita a Getúlio quando criou a CLT, o salário mínimo, as férias e descanso remunerados, a previdência social;  a mesmíssima acusação feita a João Goulart quando deu aumento de cem por cento ao salário mínimo ou quando sancionou a lei instituindo o 13° salário ou quando criou a Sunab; ou quando desencadeou a campanha das reformas; a mesmíssima acusação feita a Juscelino quando ele decidiu enfrentar o FMI e suas infamantes condições para liberação de financiamento.

Qualquer coisa que beneficie os trabalhadores, que dê um sopro de vida e de esperança aos mais pobres, que compense minimamente os deserdados e humilhados, qualquer coisa, por modesta que seja que cutuque os privilégios da casa grande, qualquer coisa, é imediatamente classificada como “populismo”. 

Outra coisa que a oposição não perdoa em Lula é sua projeção internacional. Quanto ciúme, meu Deus! Quanto despeito! Quanta dor de cotovelo!  A nossa bem postada, e sempre constispadinha elite, jamais aceitou ver o país representado por um pau-de-arara. Ainda mais que não fala inglês. Oh, horror!

Divergi de Lula inúmeras vezes. Quase sempre em relação à econômica. Com a popularidade que tinha, com o respeito que conquistara, com a força de seu carisma poderia ter feito movimentos consistentes que nos levassem a romper com os fundamentos liberais que orientavam -e orientam-  a política econômica brasileira.

E que mantinham – e mantém- o país dependente, atrasado, em processo veloz de desindustrialização.  

Pior, as circunstâncias favoráveis do comércio mundial valorizaram ainda mais o nosso papel de produtores e exportadores de commodities, criando uma “zona de conforto” que desarmou os ânimos e enfraqueceu os discursos de quem lutava por mudanças.

Outra divergência que me agastou com Lula foi em relação à mídia. Era mais do que claro que a lua-de-mel inicial com a chamada “grande imprensa” seria sucedida pela mais impiedosa e, em se tratando de um pau-de-arara, pela mais desrespeitosa oposição.

Em breve tempo, as sete irmãs que dominam a opinião pública nacional cobrariam caro, caríssimo o período em que fora obrigada a engolir o sapo barbudo. O troco viria na primeira crise.

Conversei sobre isso com o presidente, que procurou me aquietar e recomendou-me que falasse com um de seus ministros que, segundo ele, cuidava desse assunto. E o ministro me disse: “Por que criar um sistema público de comunicação, por que apoiar as rádios e a imprensa regional se temos a nossa televisão? A Globo é a nossa televisão”, disse-me o então poderoso e esfuziante ministro.

Pois é. 

Quando busco paralelo entre esta campanha de tentativa de destruição de Lula e as campanhas de destruição de Getúlio e Jango, não posso deixar de notar que eles, pelo menos, tinham um jornal de circulação nacional e uma rádio pública também de alcance nacional para defendê-los. Hoje, que temos? 

E o que entristece é que essa campanha atinge Lula quando ele se encontra duplamente fragilizado. Fragilizado pela doença, que lhe rouba um de seus dons mais notáveis: a sua voz, a sua palavra, seu poder de comunicação. Fragilizado pelo espetáculo mediático em que se transformou o julgamento do tal mensalão. 

Se algum respeito, se alguma condescendência ainda havia para com esse  pau-de-arara,  foi tudo pelo ralo, pelo esgoto em que costumam chafurdar historicamente os nossos meios de comunicação. 

Não sejamos ingênuos de pedir ou exigir compostura da mídia. Não faz parte de seus usos e costumes. Sua impiedade, sua crueldade programada pelos interesses de classe não estabelece limites. 

Não é apenas o ex-presidente que é desrespeitado de forma baixa, grosseira. A presidente Dilma também. Por vários dias, a nossa gloriosa grande mídia deu enorme destaque às peripécias de uma pobre mulher, certamente drogada, certamente alcoolizada, certamente deficiente mental que teria tentado invadir o Palácio do Planalto, dizendo-se “marido” da presidente.

Sem qualquer pudor, sem o menor traço de respeito humano, a Folha de São Paulo, especialmente, transformou a infeliz em personagem, em celebridade. Chegou até mesmo a destacar um repórter para “entrevistar” a mãe da tal mulher. Meu Deus!

Às vésperas do golpe de 1964, o desrespeito da grande mídia para com o presidente João Goulart e sua mulher Maria Teresa chegou ao ponto de o mais famoso colunista social do país à época publicar uma nota dizendo que na Granja do Torto florescia uma trepadeira. Torto, como referência ao defeito físico do presidente; trepadeira, como referência caluniosa à primeira-dama do país.

Alguma diferença entre um desrespeito e outro?

Esse tipo de baixeza não se vê quando os presidentes são do agrado da grande mídia, quando os presidentes frequentam os mesmos clubes que os nossos guardiões dos bons costumes. 

Nem que tenham, supostamente, filhos fora do casamento, que disso a mídia acha uma baixeza tratar.

Pois é. 


Fonte:   Conversa Afiada

terça-feira, 25 de setembro de 2012

CASARA: TESES DO STF TENDEM A SE ESPALHAR POR TODO O JUDICIÁRIO, ATINGINDO O CIDADÃO COMUM


Rubens Casara

por Conceição Lemes
Nesta segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão entrou na nona semana. Muitos juristas o acompanham com preocupação. Alegam que princípios de respeito às garantias fundamentais, como “o ônus da prova cabe à acusação” e “não se pode condenar alguém com base em presunções”, estariam sendo deixados de lado.
“A Ação Penal 470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário. O risco da tentação populista é que passe a produzir decisões casuísticas, para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação como opinião pública”, observa Rubens Casara. “Isso é grave, pois princípios e teorias forjados durante a caminhada da Humanidade acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar essa resposta simbólica à sociedade.”
Esse risco aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela maior Corte de Justiça do Brasil, como a Ação Penal 470, embora não sejam exclusividade dela.
“Acaba virando jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a reproduzí-las”, prossegue Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”
“Ao se espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.”
Rubens Casara é juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém, nesta entrevista ao Viomundo, ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema de justiça criminal.
Segue a íntegra da nossa íntegra.
Viomundo – Qual a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?
 Rubens Casara – Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito Processual Penal.
Sobre a sua pergunta, a minha percepção é de que a Ação Penal 470, que a grande mídia chama de “julgamento do mensalão”, ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário.
De um lado, sua origem aristocrática; um poder conservador, distante do povo, comprometido com quem detém o poder e o capital, e que historicamente sempre foi utilizado para manutenção do status quo, ou seja, como obstáculo à transformação social. Não se pode esquecer que, para parcela considerável dos que sempre detiveram o poder econômico e político,  o chamado “caso do mensalão” passou a ser encarado como espécie de vingança pelas derrotas eleitorais impostas pelo Partido dos Trabalhadores.
De outro lado, uma tendência que tem sido chamada de “tentação populista”.  Ela se traduz em decisões que buscam agradar a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pelas grandes corporações que controlam os principais meios de comunicação de massa.
Agora, a tensão entre a origem aristocrática e essa tendência populista está presente em vários julgamentos e não só na Ação Penal nº 470. De igual sorte, existem no seio do Poder Judiciário muitos conflitos, que por vezes permanecem velados.
Enfim, a magistratura é plural, diversas ideologias se fazem presentes. Existem, por exemplo, magistrados que atuam a partir de uma epistemologia e de um instrumental autoritário e outros que adotam posturas e modelos adequados à democracia.
Viomundo — Qual o risco dessa tentação populista?
Rubens Casara – É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.
Viomundo – O que significa?
Rubens Casara – São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.
Os direitos e garantias fundamentais sempre foram trunfos contra maiorias de ocasião, limites à opressão estatal, o que, em última análise, caracteriza o Estado Democrático de Direito. Só há democracia, em seu sentido substancial, se os direitos e garantias fundamentais são respeitados. Decisões judiciais que afastam, relativizam ou violam os direitos e garantias fundamentais corporificam, portanto, sérias ameaças ao Estado Democrático de Direito.
Viomundo — O que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?
Rubens Casara – Como toda decisão do Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que as teses acolhidas durante esse julgamento passem a influenciar a jurisprudência de todos os órgãos do Poder Judiciário. Essa jurisprudência é o que será chamado de legado jurídico desse julgamento.
Se, como sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de exceção”, uma decisão casuística produzida para agradar parcela da sociedade brasileira, em detrimento de direitos e garantias que normalmente seriam reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, o risco à democracia é muito grande, uma vez que se está diante de um ato, de ampla repercussão, produzido pela maior Corte de Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF).
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Porque há uma tendência de reprodução, pelas instâncias inferiores, das decisões que são produzidas no Supremo Tribunal Federal. A esse fenômeno, típico da burocratização judicial, o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina  Raúl Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.
Explico: a melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no Judiciário é não contrariar a opinião daqueles que têm o poder de anular ou reformar as suas decisões. Os juízes reproduzem as decisões dos seus tribunais e dos tribunais superiores para não terem dores de cabeça na carreira, serem aceitos na classe e conseguirem promoções.
Assim, se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da “inversão do ônus da prova em matéria penal” ou da “possibilidade de condenação a partir de presunções contrárias aos réus”, estaremos dando passos vigorosos em direção ao Estado Penal.
Por quê?  Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio constitucional da presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar como garantidor dos direitos e garantias fundamentais.
Se, de fato, isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e acolhidas em outros casos a serem julgados por diversos juízes e tribunas brasileiros. A porta para os decisionismos e as perversões inquisitoriais estará aberta.
Viomundo — Isso significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns?
Rubens Casara — Com certeza. São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.
Viomundo – Em função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O que significa exatamente?
Rubens Casara – Atos de ofício do juiz são os produzidos sem a provocação de qualquer das partes. Eles se originam da tradição inquisitorial. No sistema processual inquisitivo, o juiz acusava, produzia as provas e, depois, também julgava a pessoa a quem ele já tinha atribuído a prática de um delito.
E qual é o risco dessa atuação de ofício?  O fenômeno que o professor italiano Franco Cordero chama de “primado da hipótese sobre fato”.
O que é esse primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a hipótese da acusação como verdadeira e passa o processo tentando demonstrar que está correto. Essa atuação de ofício traduz uma antecipação de seu julgamento, consubstanciada na aceitação da hipótese a partir da qual orienta a sua busca.
O problema é que, ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele acredita ser verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que ele construiu, a partir do senso comum ou de distorções, por vezes inconscientes, do próprio conjunto probatório.
Isso compromete a imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o julgador deve manter das versões postas pelas partes. Isso acaba por levar ao que Cordero chamou de “quadro mental paranoico”, já que o juiz decide antes, ao assumir como verdadeira a hipótese da acusação, e, depois, sai em busca de material probatório para “confirmar” essa sua versão.
Viomundo – É um risco da Ação Penal 470?
Rubens Casara – É um risco de todos os processos nos quais o juiz quer assumir o protagonismo probatório. Ele pratica atos de ofício na tentativa de demonstrar a veracidade da hipótese que aceitou como verdadeira. Não comprovar essa versão significa fracassar e ninguém gosta de fracassar.
Há uma discussão muito grande sobre essa questão na doutrina brasileira. Há quem defenda a possibilidade do juiz produzir provas de ofício, mas há excelentes autores que dizem que não, que a gestão da prova deve permanecer com as partes.
A inércia do juiz seria, então, uma garantia de sua imparcialidade.
Eu prefiro essa segunda corrente que defende que o juiz, na medida do possível, deve ficar equidistante das versões das partes. Ele deve receber as provas da acusação e da defesa, para, no final, julgar a partir do conjunto probatório produzido dialeticamente pelas partes.
Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?
Rubens Casara – Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do Ministério Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir provas que a confirmem, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.
Confesso que não estudei a fundo as decisões desse ministro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal.
Para além do que a mídia noticia, não conheço a atuação do Ministro Joaquim Barbosa.
Veja bem. Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção probatória pelo juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou não à Constituição da República. Uma lei infraconstitucional contrária à Constituição é imprestável e não deve ser aplicada.
O ideal, portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador formular e provar a acusação e ao defensor a missão de defender o acusado. O ideal é que o juiz não participe da produção probatória. O ato de produzir provas é inerente à atividade de acusar e de defender.  Na verdade, um ônus de quem formula a acusação, porque no processo penal brasileiro a carga probatória é toda do acusador. A defesa não precisa provar nada, desde que a acusação fracasse na sua missão de comprovar os fatos que constituem a acusação.
No modelo brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de fazer prova e vai arcar com as conseqüências de não provar – é da acusação. Se o acusador não consegue provar sua hipótese, o réu tem de ser absolvido. É a dimensão probatória do princípio da presunção de inocência, o que se expressa na máxima in dubio pro reo.
Então, o juiz que assume o protagonismo probatório, o juiz-inquisidor, é uma figura historicamente vinculada ao modelo inquisitivo, que não é a opção constitucional feita em 1988 nem a da maioria dos Estados democráticos.
Viomundo – O modelo inquisitorial surgiu quando?
Rubens Casara – Do ponto de vista histórico, ele é posterior ao modelo acusatório que já existia no regime ateniense. O sistema inquisitivo surge no século XIII e se torna hegemônico na Europa continental até o século XVIII, momento em que tem início a sua decadência. Curioso notar que o sistema inquisitivo nasce em uma quadra histórica na qual se busca o fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é possível perceber sintomas desse sistema nas mais diversas legislações.
Viomundo – No julgamento do AP 470, tem se falado em inversão do ônus da prova, flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a partir de presunções, indícios…  Como é que fica a situação, professor?
Rubens Casara — Indício é uma prova indireta. Indícios são fatos efetivamente provados que permitem, por dedução, a certeza acerca de outro fato que se quer provar.  No nosso modelo processual, é possível uma condenação com base em indícios, desde que eles sejam capazes de demonstrar cabalmente a ocorrência dos fatos descritos na denúncia. Esse não é o problema.
Por outro lado, os demais fenômenos que você menciona representam sérios riscos a uma concepção minimamente democrática de justiça penal, conforme já mencionei. Da mesma maneira, a possibilidade de uma decisão ad hoc, voltada à satisfação dos meios de comunicação de massa e de maiorias de ocasião forjadas na desinformação, representa um risco ao Estado de Direito.   
Por quê? Porque o Poder Judiciário tem como sua principal característica o fato de ser contramajoritário. Ou seja, ao contrário do Legislativo e do Executivo, que dependem da votação popular, o Judiciário tem o dever de julgar contra as maiorias, desde que isso seja necessário para preservar os direitos fundamentais das minorias ou de um único cidadão. Existem limites ao exercício do poder que, mesmo impopulares, devem ser respeitados.
Isso significa que se, para respeitar os direitos fundamentais do Fernandinho Beira-Mar ou do José Dirceu, o magistrado tiver que desagradar toda a opinião pública, ele tem que fazer isso. O Judiciário é, ou deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, dos direitos inerentes à condição humana.
Sempre que o Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de “tentação populista”, ele se aproxima da atuação do Executivo e do Legislativo e, portanto, torna-se desnecessário. O Judiciário só se justifica para assegurar a concretização do projeto constitucional e, para tanto, deve, ou deveria, atuar como garantia dos direitos fundamentais de cada indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles selecionados pela grande mídia para figurar como inimigos públicos da sociedade.
Viomundo – Por exemplo…
Rubens Casara — Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser racistas.
Numa sociedade sexista, se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser sexistas. Numa sociedade  homofóbica, as decisões vão ser homofóbicas…
Cabe ao Judiciário impor limites aos desejos e perversões das maiorias.
Acho importante também frisar que os juízes, como todo mundo, estão inseridos em uma tradição que acaba por condicionar suas decisões. O problema no Brasil é que essa tradição é extremamente autoritária. As pessoas recorrem ao sistema de justiça criminal para resolver os mais diversos problemas. Acreditam no uso da força para solucioná-los. Problemas sociais ou políticos, por exemplo, são desqualificados, descontextualizados e redefinidos como se fossem meros casos de polícia a serem resolvidos no sistema de justiça criminal.
A sociedade brasileira é autoritária. A ausência de rupturas históricas talvez explique porque ainda hoje práticas típicas da ditadura, como a relativização de direitos fundamentais, são naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba repercutindo em todas as decisões judiciais — da primeira instância à Suprema Corte.
Viomundo – O ônus da prova cabe à acusação…
Rubens Casara – Nos modelos democráticos!!!
Viomundo – A partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a sociedade?
Rubens Casara — A inversão do ônus da prova em matéria penal é um sintoma nítido da ausência de uma cultura democrática na sociedade brasileira. Em nome de uma maior eficiência dos órgãos encarregados da repressão penal, da busca por um maior número de condenações, direitos e garantias previstas na Constituição da República são negados, e a sociedade brasileira assiste a tudo isso calada  porque se acostumou com o autoritarismo.
A naturalização de posturas autoritárias impede a criação de uma cultura verdadeiramente democrática, de respeito aos diretos fundamentais.
Nós, por vezes, aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas para condenações desassociadas de um suporte probatório robusto e confiável, conforme os meios de comunicação de massa têm noticiado. Há também quem concorde com a inversão do ônus da prova em matéria penal, sem perceber que isso representa um risco à própria ideia de democracia processual.
Viomundo — Por quê?
Rubens Casara — Por que o ônus da prova cabe ao Ministério Público? Porque o Ministério Público é o Estado-Administração, a parte que tem as melhores condições de provar as hipóteses que formula. O acusado é, nessa relação, a parte mais fraca. Por mais poderoso que o acusado seja, do outro lado está o Estado, o Leviatã, com sua estrutura e recursos.
Essa é a dimensão probatória do princípio da presunção da inocência. Se o indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado afastar essa presunção, a única admitida, no Estado de Direito, em matéria penal.
O sistema processual penal, como instrumento de tutela da liberdade, permite constatar que ao Estado também não interessa, e não deveria interessar aos seus agentes, a condenação de um possível inocente, mesmo diante do risco da absolvição de um culpado. Ao réu, basta a dúvida, que impõe, por força da Constituição, a absolvição.
Ao adotar o princípio da presunção de inocência e atribuir ao acusador o ônus de provar a materialidade e a autoria dos delitos que o Estado pretende punir, o legislador constituinte faz uma opção política que implica no reconhecimento de que alguns culpados vão acabar absolvidos, mas que isso é melhor do que condenar pessoas que podem ser inocentes.
Diante desse quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia contra a opressão estatal.
Assim, se o Estado quer punir quem pratica uma ilegalidade, ele tem de demonstrar, de forma cabal, respeitados o devido processo legal e os demais limites éticos e legais, que o acusado praticou um delito.
Não se pode presumir que alguém é culpado, por exemplo, que determinada pessoa é “o chefe da quadrilha”, a não ser que exista prova concreta, segura e suficiente da existência e da autoria do crime narrado na denúncia pelo acusador.
Para alguém ser condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida razoável.  Do contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo fascista italiano, no nazista alemão e no da extinta União Soviética. Ninguém pode ser punido pelo que é, por ser antipático ou desagradar aos detentores do poder, mas somente por aquilo que se demonstra que ele fez.
Viomundo – Por que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao Estado?
 Rubens Casara — Para preservar o indivíduo da fúria persecutória do Estado, respeitando-o como sujeito de direitos. Busca-se também evitar que se onere em demasia a parte mais fraca da relação processual.
Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega a ocorrência de um delito, atribuindo-o  ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o Ministério Público, diante das prerrogativas e poderes que têm, comprovar o que alegou na denúncia.
No Brasil, nós temos uma visão simplista de achar que só quem responde a processo criminal é bandido e que “bandido bom é bandido sem direitos”.
Isso é falso. Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma enorme quantidade de crimes, enquanto outras, que respondem a vários processos, são inocentes e podem acabar condenadas. O sistema penal é seletivo, de todos aqueles que praticam crimes, poucos acabam julgados; e nem todos que são julgados praticaram crimes.
O desafio é garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a processos criminais, sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos faz humanos e qualifica o processo penal como um instrumento racional de garantia dos direitos. O Estado, durante o processo criminal, não pode violar direitos ou garantias do acusado, sob pena de perder a superioridade ética que o distingue dos criminosos.
E se é para desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do processo penal, nem do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la na cadeia, tirando-a do convívio social, sem maiores justificativas. Insisto: o Judiciário existe para garantir os direitos fundamentais de todos.
Viomundo – Diz-se que o Supremo está sendo até pela mídia no julgamento do mensalão. O que acha?
Rubens Casara – A influência midiática está intimamente ligada ao que chamei, para utilizar um termo cunhado por Garapon, de “tentação populista”.  O populismo penal, aliás, toda forma de populismo, incorporado pelos tribunais — eu não estou falando especificamente da Ação Penal 470 — é um risco para a sociedade.
Agora, é um risco esperado. Numa sociedade do espetáculo não é estranho que o Judiciário queira chamar atenção para si e reproduzir o que já acontece em outras esferas, transformando-se num judiciário espetacular. Cada juiz também quer aparecer bem no espetáculo.
Não causa surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro grau até os tribunais superiores, procure agradar aos meios de comunicação de massa através de decisões, ainda que contrárias à Constituição da República.
Percebe-se que a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro, porque nunca deu importância ao Judiciário, sempre o considerou como um mero instrumento de opressão e de manutenção das estruturas sociais.
Acontece que no Estado Democrático de Direito o Judiciário é fundamental à garantia dos direitos e à concretização do projeto constitucional.
E o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário? Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.
O exemplo do Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para ministros, salvo raras exceções, pessoas conservadoras, sem compromissos com uma visão progressista de Estado, alguns ligados a setores conservadores da Igreja Católica ou a políticos historicamente contrários às lutas do próprio Partido dos Trabalhadores.
Em suma, perdeu a rara oportunidade de promover uma verdadeira revolução democrática no Poder Judiciário brasileiro. Vale registrar, por oportuno, que os movimentos sociais e os setores mais progressistas da sociedade civil sequer foram ouvidos por ocasião das escolhas.
Há um mito de que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o discurso da neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre praticaram, atos políticos a partir de suas visões de mundo. A extradição de Olga Benário, grávida de Anita Prestes, para os nazistas que a mataram, por exemplo, foi promovida a partir de uma decisão política travestida da melhor técnica processual no Supremo Tribunal Federal. Aliás, há um pouco de Eichmann em todos esses magistrados que se afirmam neutros e meramente técnicos.
Acho que, diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que está no governo federal acabará se conscientizando da necessidade de se pensar o Poder Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle popular e de se promoverem indicações para os tribunais superiores de pessoas comprometidas com o projeto constitucional de vida digna para todos, para além dos projetos pessoais de poder.

Fonte:   vi O Mundo

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