quinta-feira, 27 de setembro de 2012

BASTIDORES DE UM JULGAMENTO E DE UMA "CRUZADA MIDIÁTICA"



Quem se fiar nas matérias da mídia sobre a briga entre os ministros relator e revisor do “mensalão” pode até comprar o “conto de fadas” em que o herói Barbosa tenta defender a sociedade do vilão Lewandowski. Mas quem assistiu à 28ª sessão do julgamento teve outra percepção: a de que o relator pode estar tentando intimidar os ministros que acolhem interpretações, das leis e dos fatos, divergentes da sua. O artigo é de Najla Passos.

Brasília - O Supremo Tribunal Federal (STF) entrou na era do pop com o início da transmissão ao vivo dos seus julgamentos, em 2002. E, a despeito de alguns efeitos colaterais apontados com preocupação por estudiosos do Direito, como a exacerbação do ego dos atores sociais envolvidos, a iniciativa só revigora a democracia. Da mesma forma com que ministros se aproximam da população, a ponto de se tornarem heróis defendidos com o mesmo ardor que artilheiros da seleção brasileira, as mazelas do poder mais encalacrado da república são descortinadas aos olhos de quem quiser ver. E, pelo menos neste aspecto, o julgamento do “mensalão” tem sido, sim, emblemático.

Na sessão desta quarta (25), a 28ª do julgamento que a mídia tenta vender como o “maior da história”, os ministros relator, Joaquim Barbosa, e revisor, Ricardo Lewandowski, voltaram a se estranhar, como já havia ocorrido antes, e mais de uma vez. Mas o tom subiu mais do que o normal. Barbosa se irritou, entre outras coisas, porque o revisor considerou que não havia provas definitivas para condenar um réu que ele já havia taxado, antes, como culpado. 

Bastante alterado, Barbosa acusou Lewandowski de fazer “vista grossa” aos autos, insinuou que o colega se valia de “hipocrisia”, entre outras acusações. O revisor, que deixou claro o seu direito a ter um entendimento diferenciado, reagiu e disse que se o relator não conseguia admitir a contradição, deveria propor a extinção da figura do “ministro-revisor”. 

Outros ministros saíram em socorro de Lewandowski. “Cuidado com suas palavras. Vamos respeitar os colegas. Agressividade não tem lugar nesse plenário”, disse Marco Aurélio Mello. E, após a intervenção do presidente da corte, Ayres Britto, o “julgamento-espetáculo” prosseguiu sem a presença de Barbosa no plenário. 

Acontece que o relator vem construindo uma relação bastante sólida com a mídia, dentro e fora do plenário da corte. Nos seus votos, reverbera, coincidência ou não, o veredito que as redações já haviam fechado antes mesmo do início do julgamento: todos os réus são culpados e o STF só precisa oficializar isso o mais rápido possível. Barbosa, além de condenar com pulso firme, mantendo-se fiel à tese da denúncia, é o “garoto-propaganda” da cruzada midiática por agilidade a qualquer preço na condução do processo. Nos bastidores, desafia a convenção de que ministro não fala sobre processos em andamento e atende com incomum presteza os jornalistas que o procuram ao final de cada sessão. Mas, para se resguardar de possíveis críticas, o faz sempre em “off”.

Off é a redução da expressão “off de record” que, em inglês, significa fora dos registros. Segundo o Manual de Redação da Folha de São Paulo, “designa informação de fonte que se mantém anônima”. Conforme o de O Globo, “é um caso especial de declaração, em que a fonte não é identificada”. No jornalismo estadunidense, significa informação que deve ser usada apenas para a condução da reportagem, jamais para ser lançada como verdade inquestionável. No jornalismo tupiniquim, entretanto, o “off” serve de salvaguarda também para todo tipo de manipulação da informação, como aquelas reveladas recentemente com o escândalo Veja-Cachoeira. Onde enquadrar, então, a prática recorrente de Barbosa? 

A intenção confessa do relator parece nobre: ajudar a dirimir as dúvidas de uma categoria que, em geral, muito pouco familiarizada com os pormenores do direito. O “off”entra como estratégia necessária para o magistrado manter a devida discrição e o necessário distanciamento dos fatos. O resultado, porém, é outro: suas intervenções sempre ultrapassam o limite de possíveis respostas objetivas a dúvidas técnicas. O relator reafirma a superioridade das suas teses jurídicas, cobra agilidade no voto dos demais colegas e críticas posições discrepantes, em especial as do revisor. 

É preciso reconhecer que, no início, havia até uma certa resistência por parte dos jornalistas. “O Barbosa de novo não, gente”, “É preciso variar a fonte”, “Ele só fala em off”, comentavam. “Não tem jeito. A gente mal começa a pronunciar ministro e ele já está aqui”, reclamava outro. “Ele é muito grosso. Eu tenho até medo de dirigir uma pergunta para ele”, confessava uma “foca”. Mas agora, passados quase dois meses do início do julgamento, a questão parece pacificada. Ninguém mais questiona a supremacia do relator como “comentarista oficial” do processo. 

E, assim, ele assume cada vez mais ares de editor-geral de toda a imprensa dita “livre”. De uma feita, reclamou dos jornalistas que contrapunham seus argumentos com as teses da defesa. De outra, atacou o delegado da Polícia Federal Luís Flávio Zampronha, que criticou, via imprensa, a inclusão de duas das rés no processo. “Todo agente público tem uma série de limitações: precisa ser discreto, manter o sigilo. Foi um deslize gravíssimo [a concessão da entrevista com comentários sobre a ação]”, afirmou, em “off”. Contra senso? A imprensa sequer discute. A prática institucionalizada parece perfeita para ambos. O ministro abastece a mídia com o combustível necessário para justificar esses sete anos de “justiçamento” dos réus do “mensalão”. E Barbosa, em contrapartida, é alçado ao posto de herói nacional, com direito a foto de primeira página transvestido de super-homem. Está tudo nos jornais. 

Quem ler, ouvir ou assistir as reportagens sobre a sessão de julgamento do mensalão desta quarta, pode até comprar o “conto de fadas” de que o “herói” Joaquim Barbosa só estava defendendo a sociedade brasileira do seu arqui-inimigo Ricardo Lewandowski, que tentava inviabilizar as condenações de “corruptos inveterados”. Quem assistiu à sessão ao vivo, entretanto, terá outra percepção: a de que o relator, ego inflamado, pode estar tentando intimidar os ministros que acolhem interpretações, das leis e dos fatos, divergentes da sua. Algo indefensável em um órgão colegiado de Justiça.

Fonte: Carta Maior



SANTAYANA, LULA, O STF E OS JORNALISTAS


Lula despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder.




O Conversa Afiada republica artigo de Mauro Santayana do JB online:

O VEREDICTO DA HISTÓRIA



por Mauro Santayana

Cabe aos tribunais julgar os atos humanos admitidos previamente como criminosos. Cabe aos cidadãos, nos regimes republicanos e democráticos, julgar os homens públicos, mediante o voto. Não é fácil separar os dois juízos, quando sabemos que os julgadores são seres humanos e também cidadãos, e, assim, podem ser contaminados pelas paixões ideológicas ou partidárias – isso, sem falar na inevitável posição de classe. Dessa forma, por mais empenhados sejam em buscar a verdade, os juízes estão sujeitos ao erro. O magistrado perfeito, se existisse, teria que encabrestar a própria consciência, impondo-lhe sujeitar-se à ditadura das provas.

Mesmo assim, como a literatura jurídica registra, as provas circunstanciais costumam ser tão frágeis quanto as testemunhais, e erros judiciários terríveis se cometem, muitos deles levando inocentes à fogueira, à forca, à cadeira elétrica. 

Estamos assistindo a uma confusão perigosa no caso da Ação 470, que deveria ser vista como qualquer outra. Há o deliberado interesse de transformar o julgamento de alguns réus, cada um deles responsável pelo seu próprio delito – se delito houve – no julgamento de um partido, de um governo e de um homem público. Não é a primeira vez que isso ocorre em nosso país. O caso mais clamoroso foi o de Vargas em 1954 – e a analogia procede,  apesar da reação de muitos, que não viveram aqueles dias dramáticos, como este colunista viveu. Ainda que as versões sobre o  atentado contra Lacerda capenguem no charco da dúvida, a orquestração dos meios de comunicação conservadores, alimentada por recursos forâneos – como documentos posteriores demonstraram – se concentrou em culpar o presidente Vargas.

Quando recordamos os fatos – que se repetiram em 1964, contra Jango – e vamos um pouco além das aparências, comprova-se que não era a cabeça de Vargas que os conspiradores estrangeiros e seus sequazes nacionais queriam. Eles queriam, como antes e depois, cortar as pernas do Brasil. Em 1954, era-lhes crucial impedir a concretização do projeto nacional do político missioneiro – que um de seus contemporâneos, conforme registra o mais recente biógrafo de Vargas, Lira Neto, considerava o mais mineiro dos gaúchos. Vargas, que sempre pensou com argúcia, e teve a razão nacional como o próprio sentido de viver, só encontrou uma forma de vencer os adversários, a de denunciar, com o suicídio, o complô contra o Brasil.

Os golpistas, que se instalaram no Catete com a figura minúscula de Café Filho, continuaram insistindo, mas foram outra vez derrotados em 11 de novembro de 1955.  Hábil articulação entre Jango, Oswaldo Aranha e Tancredo, ainda nas ruas de São Borja, depois do sepultamento de Vargas, levara ao lançamento imediato da candidatura de Juscelino, preenchendo assim o vácuo de expectativa de poder que os conspiradores pró-ianques pretendiam ocupar. Juscelino não era Vargas, e mesmo que tivesse a mesma alma, não era assistido pelas mesmas circunstâncias e teve, como todos sabemos, que negociar. E deu outro passo efetivo na construção nacional do Brasil.

Os anos sessenta foram desastrosos para toda a América Latina. Em nosso caso, além do cerco norte-americano ao continente, agravado pelo espantalho da Revolução Cubana (que não seria ameaça alguma, se os ianques não houvessem sido tão açodados), tivemos um presidente paranóico, com ímpetos bonapartistas, mas sem a espada nem a inteligência de Napoleão,  Jânio Quadros. Hoje está claro que seu gesto de 25 de agosto de 1961, por mais pensado tenha sido, não passou de delírio psicótico. A paranóia (razão lateral, segundo a etimologia), de acordo com os grandes psiquiatras, é a lucidez apodrecida. 

Admitamos que Jango não teve o pulso que a ocasião reclamava. Ele poderia ter governado com  o estado de sítio, como fizera Bernardes. Jango, no entanto, não contava – como contava o presidente de então – com a aquiescência de maioria parlamentar, nem com a feroz vigilância de seu conterrâneo, o Procurador Criminal da República, que se tornaria, depois, o exemplo do grande advogado e defensor dos direitos do fraco, o jurista Heráclito Sobral Pinto. Jango era um homem bom, acossado à direita pelos golpistas de sempre, e à esquerda pelo radicalismo infantil de alguns, estimulado pelos agentes provocadores. Tal como Vargas, ele temia que uma guerra civil levasse à intervenção militar estrangeira e ao esquartejamento do país. 

Vozes sensatas do Brasil começam a levantar-se contra a nova orquestração da direita, e na advertência necessária aos ministros do STF. Com todo o respeito à independência e ao saber dos membros do mais alto tribunal da República, é preciso que o braço da justiça não vá alem do perímetro de suas atribuições.

É um risco terrível admitir a velha doutrina (que pode ser encontrada já em Dante em seu ensaio sobre a monarquia) do domínio do fato. É claro que, ao admitir-se que José Dirceu tinha o domínio do fato, como chefe da Casa Civil, o próximo passo é encontrar quem, sobre ele, exercia domínio maior. Mas, nesse caso, e com o apelo surrado ao data venia, teremos que chamar o povo  ao banco dos réus: ao eleger Lula por duas vezes, os brasileiros assumiram o domínio do fato. 

Os meios de comunicação sofrem dois desvios  à sua missão histórica de informar e formar opinião. Uma delas é a de seus acionistas, sobretudo depois que os jornais se tornaram empresas modernas e competitivas, e outra a dos próprios jornalistas. A profissão tem o seu charme, e muitos de nossos colegas se deixam seduzir pelo convívio com os poderosos e, naturalmente, pelos seus interesses. 

O poder executivo, o parlamento e o poder judiciário estão sujeitos aos erros, à vaidade de seus titulares, aos preconceitos de classe e, em alguns casos, raros, mas inevitáveis, ao insistente, embora dissimulado, racismo residual da sociedade brasileira.

Lula, ao impor-se à vida política nacional, despertou a reação de classe dos abastados e o preconceito intelectual de alguns acadêmicos sôfregos em busca do poder. Ele cometeu erros, mas muito menos graves e danosos ao país do que os de seu antecessor. Os saldos de seu governo estão  à vista de todos, com a diminuição da desigualdade secular, a presença brasileira no mundo e o retorno do sentimento de auto-estima do brasileiro, registrado nos governos de Vargas e de Juscelino.

É isso que ficará na História. O resto não passará de uma nota de pé de página, se merecer tanto.    

Fonte:  Conversa Afiada
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