Por Paulo Moreira Leite
Editorial do Estadão, na sexta-feira, fez observações duras sobre
o comportamento de Joaquim Barbosa, o ministro relator do julgamento do
mensalão.
Observou que “desde as primeiras manifestações de inconformismo com o
parecer do revisor Ricardo Lewandovski” a atuação de Joaquim Barbosa
“destoa do que se espera de um membro da mais alta Corte de Justiça do
país.”
O jornal, o mais influente nos meios jurídicos, explica que, em vez
de “serenidade” o ministro “como que se esmera em levar um espetáculo de
nervos à flor da pele, intolerância e desqualificação dos colegas.”
Lembrando que Joaquim Barbosa exibiu um sorriso debochado diante de
um colega que declarava discordâncias - parciais - em relação a um de
seus votos, o jornal lamenta o “desdém estampado na face do relator” e
registra a queixa de Marco Aurélio Melo: “não admito que Vossa
Excelência suponha que todos aqui sejam salafrários e só Vossa
Excelência seja uma vestal.” [Vestal - por associação, pessoa honestíssima]
Acho que em algumas situações o STF tem agido como se fosse possível supor “que todos aqui sejam salafrários”.
Exigir passaportes de quem ainda não foi condenado definitivamente – o
julgamento não acabou, gente! – é uma decisão desnecessária. O mesmo
vale para a decisão de incluir os réus na lista de procurados.
São medidas com amparo legal.
Mas a questão não é essa.
Estamos tratando de pessoas que jamais se recusaram a atender a um chamado da Justiça.
Se hoje os brasileiros podem defender seus direitos no Supremo – e
não submeter-se a coronéis e generais da Justiça Militar – é porque se
travou uma luta por isso. No banco dos réus, hoje, encontramos vários
lutadores que participaram da democratização do país.
Quando se recusaram a obedecer à lei, não eram elas que estavam
erradas, mas a Justiça, inclusive o Supremo da época, que,
vergonhosamente, se curvou à ditadura, omitiu-se diante da tortura e da
perseguição política, deixando a Justiça Militar tratar de crimes
considerados políticos.
Quem considera que o STF é exemplo para o país, poderia se perguntar:
depois de torcer abertamente para que o julgamento influenciasse as
eleições para prefeito, agora se quer que os réus sejam hostilizados
quando saem à rua?
Queremos humilhação? Vamos ampliar aquele teatro, estimulado
artificialmente pelos adversários, como se sabe, de agressividade e
ofensas?
Eu acho indecoroso lhes dar o tratamento de criminosos comuns, de bandidos.
Sabe por quê? Porque eles não são. Têm projeto para o país, defendem
ideias, já lutaram de forma corajosa por elas. Pode-se falar o que se
quiser dessa turma. Mas não há prova de enriquecimento suspeito de
Dirceu nem de Genoíno. Nem de Delúbio Soares, nem de João Paulo Cunha.
Nem de Henrique Pizzolato, condenado como maior responsável pelo desvio
de recursos do Visanet.
E é porque têm ideias e projetos que essas pessoas foram levadas a
julgamentos no STF e não para um juiz de primeira instância.
E é só porque este projeto tem apoio da maioria da população que este
julgamento tem importância, não sai dos telejornais nem das manchetes. A
causa é política. Pretende-se deixar o Supremo julgar estas pessoas,
quando este é um direito da população.
E é um julgamento político, vamos combinar.
Pretende-se usá-lo como exemplo.
E é pelo receio de que o exemplo se repita, e condenações sem provas,
sem demonstrações inquestionáveis de culpa dos réus, que mesmo quem
apoia as decisões do STF começa a ficar preocupado. Por quê?
Porque é injusto. E teme-se que a injustiça desta decisão contamine as próximas decisões.
Imagine se o mensalão mineiro obedecer ao mesmo ritual, da lei do
“sei que só podia ser dessa forma”, do “não é plausível” e assim por
diante. Vamos ter de voltar a 2000, quando, seguindo a CPI dos Correios,
o dinheirinho do PSDB começou a sair do Visanet.
Vamos ter de chegar lá e apontar quem era o responsável por liberar a
grana que, conforme escreve Lucas Figueiredo, no livro O Operador,
chegou a 47 milhões de reais apenas no mandato de Aécio Neves no governo
de Minas Gerais.
É assim que se vai fazer a campanha presidencial da grande esperança anti-Dilma em 2014? Parece que não, né, meus amigos.
É certo que há uma visão política por trás disso. Essa visão é
seletiva e ajudou a deixar o mensalão PSDB-MG num tribunal de primeira
instância, medida que favorece os réus.
Essa visão é acima de tudo distorcida e tem levado a criminalização
da atividade política. Confunde aliança política com “compra de votos” e
“pagamento de propina.” E estamos condenando sem serenidade, no grito,
como se todos fossem “salafrários.”
As provas são fracas. O domínio do fato é um argumento de quem não
tem prova individual. Você pode até achar uma jurisprudência válida.
Você pode até achar que “não é possível” que Dirceu não soubesse, nem
Genoíno.
Mas a Folha de hoje publica uma entrevista com um dos autores da
teoria do domínio do fato. Basta ler para concluir que, falando em tese,
ele deixa claro que é preciso mais do que se mostrou no julgamento.
Mas não vamos esquecer que o domínio do fato referia-se a uma
hierarquia de tipo militar, onde funciona a lei de obediência devida,
onde o soldado que desobedece à cadeia de comando pode ir a julgamento.
É disso que estamos falando? De um bando de manés que o Dirceu dominava, todo poderoso?
Que Genoíno comandava porque acabara de virar presidente do PT e
tinha de assinar documentos em nome do partido? De generais e soldados?
Alguém ali era menor de idade, não fora vacinado? Alguém não sabia ler ou escrever? Não tinha vontade própria?
Outro ponto é que faltam testemunhas para sustentar a tese da
acusação. O mensalão que “todo mundo sabe que existia” continua mais
invisível do que se pensa.
Roberto Jefferson é volúvel como prima donna de ópera.
Faltam até heróis neste caso.
Sabe aquela publicitária tratada como heroína por determinados órgãos
de imprensa, porque denunciou os desvios no Visanet? Pois é. Embora
tenha sido mencionada no tribunal por Roberto Gurgel e também por
Joaquim Barbosa, a Polícia Federal encontrou 25 000 reais em sua conta,
depositados por uma agência subcontratada pela DNA que é de… Marcos
Valério. Teve um outro, o câmara que filmou a denúncia dos correios. O
cara trabalhava para o bicheiro Cachoeira.
Coisinhas mequetrefes, né…
A acusação de que o mensalão “está na cara” é complicada quando se lê
uma resolução do Tribunal de Contas da União que sustenta o contrário e
diz que as despesas fecham. Por esta resolução, não houve desvio.
Você precisa achar que “todo mundo é salafrário” para acreditar em
outra coisa. O texto está ali, fundamenta o que diz e assim por diante.
E lembra que testemunhas que dizem o contrário de são inimigas notórias
de quem acusam.
Falamos em “desvio de dinheiro público”, mas não temos uma conta
básica. Assim: quanto saiu dos cofres públicos, quando foi entregue para
quem deveria receber — agências de publicidade, meios de comunicação
que veiculam anúncios — e quanto se diz que foi desviado. Há estimativas
que, às vezes, apenas são o nome elegante de “chute.”
O fato é que não sabemos, de verdade, qual o tamanho disso que se chama de “mensalão.”
É curioso que, mesmo com estimativas, o Supremo fale em pedir aos
réus que devolvam o dinheiro desviado. Mas como, se não se sabe,
exatamente, o quanto foi. Devolver estimativa?
Então, conforme o TCU, não houve desvio. Você pode até contestar essa
visão, mas não é uma questão de opinião, somente. Precisamos mostrar os
dados, os números, as datas. Não posso entrar no banco e dizer que o
dinheiro sumiu de minha conta sem mostrar os saldos e extratos,
concorda? E o banco tem de mostrar para onde foi o dinheiro que eu disse
que estava lá, certo?
Nós sabemos que os ministros do TCU são indicados por razões
políticas e muitos deles são ex-deputados, ex-ministros. Até posso achar
que é “todo mundo salafrário”, mas não se pode tomar uma decisão com
base nessa opinião sem tomar uma providência – como denunciar os
supostos salafrários na Justiça, concorda? Vamos cassar os ministros que
sustentam a lisura dos contratos?
Sei que você pode discordar do que estou dizendo. Tudo bem. É seu direito. Concorda? Também.
Eu só acho que desde Voltaire, um dos pioneiros do iluminismo, posso
não concordar com nada do que dizeis mas defenderei até a morte o
direito de fazê-lo.
O nome disso é democracia.
E é em nome disso que não entendo por que o relator Joaquim Barbosa
declarou-se ofendido com uma crítica de José Dirceu ao julgamento.
Dirceu falou em populismo jurídico.
Barbosa considerou isso uma “afronta.” É engraçado. Embora o
populismo tenha virado xingamento depois de 1964, existem cientistas
políticos renomados que dizem que é um sistema de ação político válido,
que envolve, claro, o argentino Peron, o turco Kemal Ataturk e muitos
outros.
Mas essa é outra discussão. O que importa, aqui, é lembrar que juiz
julga e fala pelos autos, mesmo quando o julgamento é televisionado.
Não pode ficar ofendido. Ou melhor, pode. É humano.
Mas não pode manifestar isso num julgamento. Não pode ter uma opinião
pessoal. Não pode falar que gosta de um partido, ou que tem desprezo
por outro. Tem de ser inteiramente impessoal, e por isso usa uma toga
negra. Seu símbolo é uma balança, os olhos vendados.
Um juiz pode até ficar indignado com os métodos com que se faz política no Brasil desde os tempos de Pedro Alvares Cabral.
Mas não pode enxergar corrupção por trás de toda aliança política que
não entende nem consegue explicar. Não pode achar que todo pacto entre
partidos é feito de roubo e de propina. Porque é esta visão que domina o
julgamento. E ela é errada.
Vou me candidatar ao troféu de frasista do domingo ao lembrar que, se
não houvesse divergência nem traição, nunca haveria aliança em
política.
É só perguntar à velha guarda do PMDB o que ele achou da aliança do Tancredo Neves com o Sarney e do abandono das diretas-já.
Aos tucanos, o que eles acharam do acordo com ACM para eleger Fernando Henrique Cardoso. Até dona Ruth se enfureceu.
Aos petistas, o que acharam dos novos-amigos que apareceram em 2002, a
começar por um empresário que ficou vice, o PTB do Jefferson, da Carta
ao Povo Brasileiro e assim por diante…
Se todo mundo pensasse igual não era preciso fazer aliança.
Aliança se faz com adversários e aliados distantes. Se não fossem, entravam para o partido, certo?
Alianças envolvem partidos diferentes e, as vezes, muito diferentes.
Podem ser um desastre ou uma maravilha, mas são legítimas como
instrumento de governo. Claro que, pensando como o PCO, o PSTU, a LER, o
MNN, é possível achar que não dá para fazer aliança com quem é
salafrário, categoria que na visão dessa turma inclui mais ou menos 200%
dos políticos – aqueles que estão em atividade e todos os outros que
ainda não entraram na profissão.
Alianças se compra com dinheiro? Não. É suborno? Não.
Mas inclui dinheiro porque a política, desde a invenção do
capitalismo e da sociedade burguesa, é uma atividade que deixou de ser
exclusiva da nobreza, chegou ao cidadão comum e se profissionalizou. O
dinheiro pode sair do Estado, recursos que permitem um controle real e
uma distribuição democrática. Ou pode vir dos interesses privados, que
assim colonizam o Estado conforme seus interesses. Os adversários da
turma que está no banco dos réus sempre se opuseram a uma reforma que
permitisse esse controle maior. Dá para imaginar por que.
Os “políticos-salafrários” só pensam numa coisa: ganhar a próxima
eleição. A vida deles é assim. Contaram os votos, começam a pensar na
campanha seguinte. É normal. Você pode achar muito oportunismo. Eu não. A
democracia não para.
Por isso as verbas de campanha são sua preocupação permanente
Por isso, os mais velhos contam que o movimento democrático que
derrubou a ditadura militar tinha uma caixinha clandestina que ajudou a
vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Era imoral? Não. Era
ilegal? Devia ser.
Os grandes financiadores da luta no colégio eleitoral foram grandes empreiteiras.
Em 1964, quando até Juscelino foi humilhado por um IPM infamante, se
dizia que o mundo se dividia entre subversivos e corruptos.
Mas estávamos numa ditadura, quando se espera que seus adversários
políticos sejam tratados como inimigos morais. Este recurso favorece
decisões arbitrárias.
Numa democracia, todos são inocentes – até que se prove contrário.