quinta-feira, 14 de março de 2013

A FUMAÇA BRANCA E A FUMAÇA SOMBRIA


 


 A escolha do nome 'Francisco' pelo novo Papa, resgatou a esperança de setores cristãos progressistas  numa reconciliação da Igreja com a opção pelos pobres, simbolizada na ordem dos franciscanos, e consagrada nos valores do Vaticano II. A longa noite de repressão doutrinária imposta pelos papados de João Paulo II e Bento XVI, com o aggiornamento dos tribunais da inquisição, teria, desse ponto de vista, atingido o limite de exaustão conservadora na cúpula romana. Crises, escândalos e disputas autofágicas pelo poder entre falanges extremadas desencadearam assim dois movimentos de autopreservação na burocracia de Roma: a renúncia 'sanitária' de Bento XVI e a escolha de um tertius, um papa sulamericano, externo ao embate que corrói o Vaticano. O duplo  sinal inauguraria  uma espécie de 'abertura lenta, segura e gradual' no interior da igreja. A escolha do nome 'Francisco' pelo novo Papa foi entendida desse modo pela esperança progressista, como um aceno de moderação e retorno a um diálogo reprimido nas últimas décadas. Leonardo Boff, um dos expurgados pelo ciclo Ratzinger, assegura, por exemplo, que o nome escolhido por um Papa não é apenas um ornamento, mas encerra um projeto de Igreja. Isso é o que teria dito a fumaça branca emitida na quarta-feira, em Roma. Pode ser. Mas a ela seguiu-se uma fumaça sombria, densa, carregada de fumos de horror e dúvidas. Uma delas condensa todas as demais: onde estava, e o que  fez  Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco I, entre 1976 e 1983, quando uma ditadura militar aterrorizante matou e desapareceu com 30 mil pessoas  em seu país? (leia nesta pag. as análises e reportagens de Eduardo Febbro, Dermi Azevedo e Martin Granovsky. Leia também o especial sobre a crise que resultou na renúncia de Bento XVI)



As primeiras tarefas do Papa Francisco

As primeiras obrigações de Jorge Bergoglio são vergonhosamente terrenas. A primeira delas: penetrar o conteúdo do dossiê secreto elaborado por uma comissão composta pelos cardeais Jozef Tomko, Salvatore de Giorgi e Julián Herranz. Esse informe é dedicado ao caso dos Vatileaks, ou seja, o roubo dos documentos de Bento XVI e seu conteúdo: as guerras de poder, os abusos sexuais e práticas financeiras no seio do banco Vaticano, manchadas de irregularidades. O artigo é de Eduardo Febbro, direto da Cidade do Vaticano.

Cidade do Vaticano - A fumaça da manhã foi preta e ao cair à noite o fumo branco da chaminé instalada no teto da Capela Sistina anunciou ao mundo a escolha de um novo papa. O júbilo que se seguiu à fumaça branca foi envolvido por um estupor silencioso quando, logo depois que o cardeal Jean Louis Tauran disse em latim o tradicional “Habemus Papam”, ele pronunciou o nome de Jorge Mario Bergoglio. “Bergoglio? Quem é?” – perguntou uma senhora surpreendida pela novidade. Logo houve um silêncio incômodo, como uma sombra repentina que engoliu a voz, a respiração e a explosão da alegria guardada no coração durante tantos e tantos dias. O papa argentino entrou assim na história, sob uma chuva persistente, a ignorância das pessoas e um frio que exigiu uma fé tenaz para suportar a geada e a água durante várias horas.


A grande maioria dos fieis não lembrava seu nome. Bergoglio era um perfeito desconhecido e muitos recorreram ao celular para perguntar ou indagar pela internet quem era esse novo papa que abria uma brecha na muralha da cidade papal. Bergoglio saiu detrás das falsas evidências que sempre são apresentadas pelos “especialistas”. Não figurava nem como favorito, nem como segundo, nem como quinto ou último. Também não foram necessárias muitas rodadas de votação para designar a este papa jesuíta que, desde o ponto de vista da encadeada estrutura do Vaticano, não pertence à cúria, ou seja, o ninho infestado de lutas, conspirações e complôs dignos de uma trama de espionagem. Os 115 cardeais votaram uma vez no primeiro dia do conclave, 12 de março, e pelo menos três vezes ontem, pela manhã e pela tarde.



Debruçado no balcão da Basílica de São Pedro, Bergoglio parecia ter pedido permissão para estar ali. Como um convidado que se equivocou de banquete e não encontra seu lugar e sua gente. Tímido, receoso, equivocando-se nos passos estabelecidos pelo cerimonial e, ao mesmo tempo, radiante e próspero neste momento de vitória íntima. Jorge Bergoglio é o primeiro papa argentino e o primeiro latino-americano da história. De agora em diante se chama Francisco. Seu gesto inaugural consistiu em rezar por Joseph Ratzinger e logo inverteu a ordem dos costumes. Em vez de dar a benção, pediu aos fieis que o abençoassem. Então caiu outro silêncio sobre a praça, massivo, repentinamente místico, e o papa recém-eleito recebeu a benção dos crentes antes de abençoá-los.



“Vocês sabem que o dever do conclave era dar um bispo a Roma. Parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo no fim do mundo. Mas aqui estamos”, disse Bergoglio já com as honras e a responsabilidade de Francisco. A imprensa se equivoca em sua designação ao chamá-lo de “Francisco primeiro”. É um erro. Jorge Bergoglio é, e assim esclareceu o porta-voz do Vaticano, Monsehor Lombardi, somente Francisco. Ele se chamará primeiro só quando outro papa levar o mesmo nome. Os fieis gritaram seu nome, cantaram e dançaram na praça São Pedro em uma espécie de êxtase sempre renovado. Não importava que não o conhecessem bem, ou que seu nome fosse quase impronunciável. A lealdade da fé se impôs aos procedimentos secretos e à surpresa. “É um papa afinal, isso é a única coisa que importa”, dizia com os olhos inundados pela emoção um senhor de idade muito avançada.



O catolicismo, que não é outra coisa que a fé das pessoas, deixou de estar órfão. A magia da comunhão funcionou poucos minutos depois que a guarda suíça se perfilasse nas escadarias da Basílica. “Francisco, Francisco, Francisco”, gritavam as pessoas: jovens e idosos, da Europa, da América, da África ou da Ásia. O rosto e o nome da restauração já era público. A fé é um milagre inteiro, um fluxo perpétuo que dita o respeito por essa crença e por essa algaravia até ao ateu mais profundo.



Um quarto de hora mais tarde a Praça São Pedro se encheu de milhares de guarda-chuvas suplementares e a Via da Conciliação se converteu em um incessante fluxo humano. Aos indiferentes isso pode parecer incompreensível. Mas não era hora de entender por que, mas sim de ver que a ideia da providência divina e de seu representante na terra ainda funciona ao ponto de colapsar as ruas e os bairros vizinhos ao Vaticano. Nada indicava o que ocorreu. Depois de ter disputado o papado com Bento XVI, no Conclave precedente, Jorge Bergoglio foi retirado de todas as previsões. E entrou pelo arco mais triunfal quando todos esperavam um italiano, um brasileiro, um norteamericano ou um húngaro. Nos dias anteriores e durante o Conclave, seu nome só foi citado pelos vaticanistas de Roma como o candidato precedente que perdeu para Ratzinger. Uma referência ao passado, um dado sem transcendência. Mas Mario Jorge Bergoglio se instalou no trono de Francisco no comando de uma igreja assolada por seus próprios pecados. Mais ainda, a indicação de Bergoglio também rompeu a magia da adversidade. Anunciava-se um Cônclave dividido, antagônico em suas bases, inconciliável em suas posições. A rápida indicação do papa Francisco foi recebida como um alívio.



Aquele homem de andar modesto e palavras suaves reconciliou em um instante a Praça de São Pedro de todos os seus desencontros. Naquele momento, o passado do homem era uma incógnita como seu nome. Joseph Ratzinger foi vencido pelo peso virulento dos pecados cometidos. Jorge Bergoglio disse: “Começamos este caminho, bispo e povo juntos. Esta viagem da Igreja de Roma, que guia a todas as igrejas, uma viagem de irmandade, de amor, de confiança entre nós”.



A viagem de Francisco promete ser densa porque a igreja não buscava um papa, mas sim um super homem, um atleta, um bombeiro, um conciliador, um corredor de cem metros e um general disciplinado e forte. “Estamos precisando de um papa forte”, repetiam à exaustão os especialistas e os cardeais antes de iniciar o Conclave. Um papa com poder para reorientar a cúria, reorganizar os ministérios do Vaticano, purgar as águas contaminadas com as sujeiras profundas reveladas pelos Vatileaks e, além disso, voltar a semear os valores cristãos no coração das sociedades ocidentais que se banham no hedonismo e no consumo. Um Papa orquestra completo que faria as vezes de administrador, evangelizador, pastor, teólogo de alcance mundial e grande comunicador de suas mensagens. A aposta tem a envergadura de um impossível, mas é o que dita a história e o que os crentes esperavam do Papa antes que seu nome fosse conhecido.



Nos primeiros lugares da Praça de São Pedro havia um pequeno grupo de argentinos que foram literalmente invadidos pela imprensa. Entre as muitas bandeiras que eram sacudidas desde a tarde havia duas argentinas. À noite, se converteram no foco de atenção e de alegria. As pessoas dançavam em torno deles, as abraçavam, vinham pedir sua opinião, buscar informação e até um olhar como benção. Havia sobretudo argentinos jovens, emocionados de alegria e incredulidade, convencidos de que, depois de dois papas frios, Francisco seria o papa latino, o papa da humanidade, dos matizes, da bondade e da solidariedade instantânea que caracteriza os povos da América Latina. “Deus está no céu, mas na terra o Papa é argentino”, dizia um jovem argentino com pronunciado acento cordobés. 



As primeiras obrigações de Francisco são vergonhosamente terrenas. A primeira delas: penetrar o conteúdo do informe secreto elaborado por uma comissão composta pelos cardeais Jozef Tomko, Salvatore de Giorgi e Julián Herranz. Esse informe é inteiramente dedicado ao caso dos Vatileaks, ou seja, o roubo dos documentos de Bento XVI e o conteúdo dos mesmos: as guerras de poder, os abusos sexuais e práticas financeiras no seio do banco Vaticano, o IOR, manchadas de irregularidades. Esse informe foi determinante na renúncia de Joseph Ratzinger. O Papa renunciante que determinou que o conteúdo global do informe só fosse conhecido por seu sucessor. Os cardeais se revelaram ante à vontade de Bento XVI e exigiram conhecer o informe antes de eleger um novo Papa. Houve uma “comunicação” sobre as grandes linhas do mesmo, mas não leitura total.
Quando Francisco o ler talvez entenda melhor por que Ratzinger renunciou, ou se dê conta de que ser pastor não bastará para reformar a igreja, seus males atávicos, suas posturas reacionárias ante os temas da sociedade, o interminável catálogo de abusos sexuais contra menores, e a também interminável lista de hierarcas que protegeram esses criminosos. Essa igreja moderna, corrupta, que lava dinheiro da máfia ou se mete em questões delicadas, que pactua com ideologias que depois combate com seus discursos – o ultraliberalismo – está vigente desde o mandato de João Paulo II. Apesar de tudo e graças à ligeireza e à cumplicidade dos meios de comunicação do sistema, o falecido papa polonês conserva uma popularidade assombrosa. Até hoje, nos arredores do Vaticano, há mais fotos, cartazes e insígnias em sua honra que de Bento XVI. Bergoglio também tem um passado com zonas pouco felizes. Talvez Francisco faça muito melhor e vá em outra direção do que aquela que tomou João Paulo Segundo, Bento XVI e o próprio Bergoglio antes de ser o Papa Francisco.



Tradução: Marco Aurélio Weissheime

Fonte:  Carta Maior


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